Comprometimento da renda familiar com dívidas é recorde e pode afetar consumo, dizem analistas
O novo ciclo de alta dos juros no país acende um alerta para os possíveis impactos sobre o orçamento das famílias brasileiras, cujo comprometimento da renda com dívidas encontra-se em níveis recordes. Para alguns economistas, a combinação pode trazer um freio ao consumo e um foco maior em honrar compromissos já contratados. Outros ponderam que, ainda que a trajetória da Selic seja ascendente, o patamar alcançado seria historicamente baixo para o Brasil, afastando grandes preocupações em relação à inadimplência.
O longo período de afrouxamento na política monetária pelo Banco Central, que levou a Selic de 14,25% ao ano em meados de 2016 para 2% no início de 2021, foi acompanhado por redução significativa das taxas de juros médias em operações de crédito ao consumidor (de 42% ao ano para 23%) e aumento do endividamento nos lares (de 25% do PIB para 30%), observa Ailton Braga, ex-analista do Banco Central e atual consultor legislativo do Senado, em artigo publicado no Blog do Ibre, o Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre).
Como percentual da renda anual das famílias, diz, o endividamento passou de 44,3% em abril de 2017 para 58% em março deste ano, segundo dados do BC. Já o comprometimento da renda mensal com o serviço da dívida foi de 26,6% em janeiro de 2018 para 30,4% em março de 2021.
Segundo Braga, o aumento do endividamento foi maior do que o do comprometimento da renda ao longo dos últimos anos por causa da redução dos juros no período e do alongamento do prazo de pagamento dos empréstimos, principalmente devido ao avanço do crédito imobiliário. A expansão do endividamento, porém, tem limites. “Há esse indicativo de que o comprometimento de renda varia em um intervalo estreito e chegamos a uma máxima. Quanto uma família pode comprometer com pagamento de dívidas? Não dá para ser 50%”, afirma Braga ao Valor.
Para ele, o recém iniciado ciclo de alta da Selic, que deve chegar a algo entre 6,5% e 7,5% até o fim do ano, pode adicionar impacto relevante a esse cenário. “Apesar de ser, para o Brasil, uma taxa historicamente baixa, irá resultar em aumento das taxas de juros ao consumidor em momento de elevado endividamento.”
As famílias, diz Braga, terão, então, de ajustar o orçamento doméstico para reduzir a fatia da renda comprometida. “Elas devem reduzir gastos, optar por pagar dívidas e evitar contrair novo endividamento”, afirma. O reflexo, segundo ele, tende a ser uma redução no consumo das famílias. “Mas não dá para afirmar que vai significar queda da demanda agregada total e do PIB”, pondera.
Para Isabela Tavares, economista da Tendências Consultoria, o nível de comprometimento de renda das famílias está “relativamente controlado”. Pelo indicador da Tendências, que considera a massa do trabalho habitual e inclui também o saldo de cartão de crédito sem juros, o comprometimento das famílias com dívidas avançou 1,3 ponto percentual em abril, ante igual mês de 2020, para 22,9%. Já o endividamento subiu 5 pontos percentuais, para 48,2%.
“Acho que não tem nada muito explosivo até por causa dos próprios juros. O cenário é de elevação, mas não para aqueles níveis máximos que vimos”, diz Isabela, citando ainda medidas recentes que contribuem para aumentar a competição bancária, como o Pix.
Segundo a economista, a pressão sobre o comprometimento das famílias com dívidas acompanha um cenário mais fraco da massa de renda ampliada – que sentiu a ausência do auxílio emergencial no primeiro trimestre -, aumento dos juros, já que spreads bancários (diferença entre o custo de captação e empréstimo) anteciparam a alta da Selic, bem como a expansão do crédito às famílias. “Esse crédito continua crescendo, inclusive, com aumento de modalidades emergenciais, como cheque especial e cartão de crédito rotativo, que têm juros mais altos e pressionam ainda mais o comprometimento de renda”, afirma.
Todo esse movimento, segundo a economista, já era esperado. Mas surgem alguns pontos de incerteza. A esticada na inflação, por exemplo, também faz com que as famílias recorram mais ao “crédito emergencial”, diz Isabela. “Pode limitar um pouco o consumo, mas não de forma a frear o crescimento.” A Tendências projeta que o comprometimento de renda médio das famílias suba 0,8 ponto percentual neste ano, ante a média de 2020, para 22,7%.
Para Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, a evolução da atividade parece um indicador mais relevante para a trajetória de endividamento das famílias do que o ciclo de alta dos juros. “Entre 2004 e 2012, tínhamos uma taxa real de juros bem elevada e mesmo assim o endividamento cresceu. O mais complicado, na verdade, é uma recuperação lenta do emprego”, diz.
Ainda que a Selic vá a 7,25% ao ano, seria um patamar baixo para o padrão histórico, reforça Vale. O que será importante acompanhar, segundo ele, são os spreads bancários. “O BC atuou muito nos últimos anos para diminuir o spread bancário, que caiu e está estável nesse momento.”
Segundo o diretor de crédito de um grande banco, não há sinais de grande piora na inadimplência. A fatia de 30% no comprometimento de renda das famílias, diz, é o limite que consideram saudável. Se começar a apontar para cima, preocupa, mas no momento não existe essa indicação. (Colaborou Talita Moreira)
Fonte: Valor Econômico