Um empresário paulista ficará sem carteira de motorista, passaporte e todos os seus cartões de crédito. Em uma decisão inédita, a 2ª Vara Cível de São Paulo entendeu que esse era o caminho para forçá-lo a pagar o que deve a uma concessionária de veículos. A juíza do caso, Andrea Ferraz Musa, usou como argumento uma brecha do novo Código de Processo Civil (CPC).
Ela seguiu a seguinte lógica: se o devedor não tem dinheiro para pagar a dívida, ele também não teria como custear viagens internacionais, manter um veículo ou mesmo cartões de crédito. “Se, porém, mantiver tais atividades, poderá quitar a dívida, razão pela qual a medida coercitiva poderá se mostrar efetiva”, pondera a juíza na decisão.
A tal brecha do novo CPC diz respeito ao inciso 4º do artigo 139. Esse dispositivo – que vem gerando bastante polêmica no meio jurídico – dá poderes quase que ilimitados aos juízes para a determinação de medidas que forcem o cumprimento de suas decisões. Na prática, pela abragência do texto, a única exceção seria a prisão civil – permitida somente nos casos de dívidas por pensão alimentícia.
No antigo código, vigente até março deste ano, essa permissão não se estendia a casos que envolvessem devedores. O juiz, nos processos de execução, devia seguir as formas tradicionais de penhora ou expropriação de bens.
Com a entrada em vigor do novo texto, os credores passaram a investir em medidas mais agressivas de cobrança. No caso julgado pela 2ª Vara Cível de São Paulo, por exemplo, a ação tramita desde 2013 e até agora nada foi pago. Segundo consta no processo, “todas as medidas executivas cabíveis foram tomadas, mas o devedor não apresentou nenhuma proposta nem cumpriu de forma adequada as ordens judiciais”.
Advogados têm feito esse tipo de solicitação aos juízes, no entanto, somente nos casos em que há indícios de ocultação ou desvio de patrimônio – como sendo uma tentativa do devedor para não pagar o que deve.
“É algo extremamente secundário e só possível após o esgotamento de todos os meios de busca de patrimônio existentes. Ou seja, somente quando se percebe que o devedor está usando o processo como mecanismo de rolagem de uma dívida”, afirma Ricardo Collucci, sócio do escritório Bergamini & Collucci Advogados e representante do credor que conseguiu decisão favorável da 2ª Vara Cível.
O inciso 4º do artigo 139 no novo CPC também serviu de base para outra inusitada decisão. A 4ª Vara Cível de São Paulo, atendendo ao pedido de um credor, determinou a quebra de sigilo bancário do devedor – decisão típica em processos que envolvem a suspeita de crime, não na área cível.
A juíza do caso, Claudia de Lima Menge, determinou a apresentação dos extratos referentes aos últimos 12 meses de todas as contas bancárias, inclusive as de investimento, que tenham a titularidade da pessoa inadimplente. O processo envolve uma ação judicial que já dura quase 20 anos. O credor ingressou com o pedido no fim da década de 90, teve o direito ao pagamento reconhecido, mas desde lá não consegue receber.
Esses extratos bancários serão usados pelo credor, então, para rastrear de onde vem e para onde vai o dinheiro que custeia o padrão de vida elevado do devedor. Há indícios no processo de que ele esteja se utilizando de terceiros para esconder patrimônio e, desta forma, escapar do pagamento.
Na decisão, a juíza afirma que o devedor não atendeu determinação judicial nas vezes em que foi intimado a comprovar a titularidade e situação jurídica de imóveis e também a origem de valores declarados à Receita Federal. Segundo a magistrada, foram oferecidas informações “vagas e destituídas de mínima comprovação”.
“O comportamento adotado pelo executado afronta os princípios basilares que norteiam a atual sistemática processual”, diz a magistrada. “Mais ainda, a conduta é hábil a caracterizar ato atentório à Justiça, por se tratar de oposição maliciosa à execução e empecilho à efetivação da penhora”, acrescenta na decisão. A juíza, além de determinar a quebra de sigilo bancário, impôs ao devedor multa equivalente a 10% dos valores devidos.
Representante do credor no caso, o advogado Fabio Gentile, sócio do escritório BGR, combinou – para o pedido da quebra de sigilo bancário do devedor – o novo dispositivo do CPC com a Lei Complementar nº 105, de 2001. O advogado sustenta que no inciso 8º do parágrafo 4º do artigo 1º da lei consta a hipótese de ocultação de bens entre as necessárias para que seja determinada a exposição da vida financeira do envolvido.
“Essa lei, apesar de muito usada nos casos que envolvem crime, não faz distinção entre processos penais e processos cíveis. Ela menciona a possibilidade de quebra de sigilo bancário quando o juiz está diante de possíveis ilícitos”, afirma o advogado. “Já o novo código dá poderes aos juízes para que atuem de maneira mais rigorosa. E nesse rigor eu não posso deixar de ver a possibilidade de entender a vida econômica da pessoa que deve num processo judicial de execução”, complementa.
Apesar de permitidas pelo mesmo artigo 139 do novo CPC, as medidas decretadas pela Justiça Paulista têm vieses diferentes, segundo o advogado Daniel Amorim Assumpção Neves, do escritório Neves, Rosso e Fonseca. “As de restrição de direitos seriam medidas coercitivas, que ameaçam piorar a situação do devedor para que ele se sinta forçado a pagar o que deve. Já a quebra de sigilo seria uma medida de sub-rogação porque ela substitui a vontade do devedor, que, nesse caso, era a de não expor os seus bens”, diz.
Fonte: Blog Televendas