Foi publicado o relatório “Doing Business” 2017, do Banco Mundial, que analisa dados de 190 países, divididos em dez temas. Nele chama a atenção a posição do Brasil no ranking geral de eficiência (123º), mas também as discrepâncias entre temas como a Proteção de Minoritários (32º) e o Acesso ao Crédito (101º), afetando as chances de recuperação econômica e alimentando o mito da “Belíndia”. A sua gravidade parece ter chamado a atenção do governo, se tomarmos por base a entrevista concedida ao Valor pelo presidente do BC, Ilan Goldfajn, em 31 de outubro, citando como “pilares” da agenda de trabalho o acesso e o custo do crédito. Mas o que podemos propor no ambiente brasileiro?
Algumas respostas são dadas pelo Banco Mundial. O acesso ao crédito é medido por um índice dividido em dois temas: informações sobre crédito (8 pontos), que abrange cadastros e bancos de dados; e a eficiência do ambiente legal (12 pontos). Embora o Brasil tenha a nota 7/8 no primeiro tema, recebe apenas dois pontos no segundo. Cada um de doze critérios objetivos vale um ponto no índice do ambiente legal.
O primeiro aspecto diz respeito à existência de um sistema harmônico e integrado, com adoção de equivalência funcional entre garantias de diferentes naturezas. Eis algo distante da nossa realidade, pois admitimos formas concorrentes de garantias, como penhor, alienação fiduciária, reserva de domínio, privilégios e direitos de retenção. Para cada uma, há regras distintas e casuísticas, que tornam o sistema de garantias ilegível, além de resultarem em menor transparência e na chamada “arbitragem regulatória”. Essa constatação não é nova, e a solução de “equivalência funcional” – uma única regra para todas as formas – surgiu nos Estados Unidos há mais de 50 anos, no famoso Art. 9º do Uniform Commercial Code.
Em julho de 2016, foi aprovada a lei modelo da ONU/Uncitral sobre garantias reais mobiliárias. Desde 2015, pude participar das sessões de discussão, em Viena e Nova York, como observador-acadêmico credenciado pelo Itamaraty. Seguindo o exemplo americano, é sugerido um sistema “funcional e unitário”: não só deve haver uma única regra, como também a lei deve regular uma única garantia, uma espécie de super-hipoteca mobiliária. Não é nada estranho, portanto, que um sistema simples e direto seja visto como uma forma de melhorar o ambiente regulatório, de combater a assimetria de informação e de facilitar o acesso ao crédito.
Vários autores apontam esses benefícios, seja na linha de Law and Economics ou noutra mais próxima da nossa tradição jurídica. O sucesso dessas soluções no ambiente de “Lei Civil” pode ser verificado na Colômbia, que é a 53ª colocada no ranking geral e a segunda colocada no ranking mundial de acesso ao crédito, desde que concluiu a reforma das garantias, em 2015.
Todos os outros aspectos derivam da mesma visão de simplificação e transparência. Os critérios 2 a 4 do Banco Mundial tratam de diferentes extensões de “garantias flutuantes”, na forma de penhor não-possessório, seja sobre uma categoria de bens, sobre (quase) todos os bens móveis do garantidor ou sobre bens futuros, extensíveis aos frutos, ao produto da alienação ou aos bens substitutos.
Para o item 5, deve ser possível garantir todas as espécies de obrigações, inclusive por garantias omnibus ou “all-sums”. Os itens 6 a 8 tratam da publicidade das garantias mobiliárias: um sistema registral unificado, com abrangência nacional e indexação eletrônica, pelo indicador pessoal do garantidor (nome e CPF/CNPJ); o registro não deve requerer qualquer “qualificação” do título, mas apenas a submissão de “formulários”, e toda espécie de garantia deve sujeitar-se ao mesmo registro; por último, a interação com o registro deve ser possível por meio eletrônico. A universalização do registro, quanto ao objeto do penhor, é uma medida relevante para o acesso ao crédito por pequenas e médias empresas, cujo maior patrimônio são estoques e outros bens móveis.
Os itens 9 a 12 tratam da eficácia das garantias. Primeiro, afirma-se que o credor garantido deve ser pago antes dos créditos tributários e trabalhistas, seja no concurso singular ou universal. Aqui vale uma ressalva, para evitar alarmismo: o Brasil já adota solução semelhante, pois a propriedade fiduciária exclui os bens de todo concurso; ademais, a ordem de prioridades na falência, modificada em 2005, confere às garantias reais uma posição mais privilegiada que os créditos fiscais, além de limitar a prioridade dos trabalhistas.
Poderíamos aproveitar da Uncitral, entretanto, o conceito de que é o financiamento à produção e à aquisição de bens – e não a natureza desta ou daquela garantia – que deve receber tratamento prioritário. Admite-se também que a realização das garantias seja suspensa na recuperação judicial, mas os direitos dos credores devem ser preservados e o período de suspensão, limitado. Finalmente, recomenda-se a predominância de formas extrajudiciais de realização das garantias.
Dos exemplos acima, tiramos duas lições. A primeira, de que as garantias devem ser avaliadas sob uma visão global e sistemática, muito difundida na Europa – na França, criou-se em 2006 um quarto livro do Código Civil, chamado “Das Garantias”. A segunda, de que o custo e o acesso ao crédito são diretamente dependentes do ambiente regulatório das garantias. Em razão disso, é preciso ter garantias simples, baratas, flexíveis e eficazes. Infelizmente, a conclusão do Banco Mundial é de que (quase) nada disso pode ser encontrado no Brasil. Precisamos discutir uma reforma ampla das garantias.
Fonte: Blog Televendas
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