O Banco Central (BC) abriu caminho para reduzir a chamada “trava bancária”, mecanismo pelo qual um banco concentra o fluxo de recebíveis de uma empresa como garantia para antecipar recursos, ao colocar ontem em consulta pública uma proposta que prevê o registro de recebíveis de cartões usados por pequenas empresas para obter crédito. Com isso, o órgão regulador coloca em debate uma demanda antiga de varejistas e credenciadoras de cartões não ligadas a bancos.
O assunto foi discutido ontem pelo BC em reunião com os presidentes dos maiores bancos do país. Na ocasião, os representantes das instituições financeiras advertiram que acabar totalmente com a trava bancária poderia resultar em aumento de juros para as próprias empresas.
A trava concentra o fluxo de recebíveis de uma companhia como garantia para antecipar recursos e outras operações de crédito. Em contrapartida, o cliente trava seu domicílio bancário naquela instituição. O modelo remonta à época do duplo monopólio de Mastercard e Visa, e existe para evitar que os mesmos recebíveis sejam dados em garantia a mais de um banco.
A proposta do BC contorna essa questão ao determinar que as credenciadoras de cartões registrem as operações (em entidade a ser autorizada pelo regulador) para que o estabelecimento comercial possa usá-las livremente. As instituições só poderão realizar operações vinculadas a recebíveis de cartões que estiverem registrados.
O órgão regulador também pretende limitar o volume de recebíveis dados em garantia pelo lojista, de forma que seja proporcional à operação de crédito que pretende tomar. Na prática, isso transforma a trava de total para parcial – pleito antigo do varejo.
Hoje, quando um estabelecimento trava seu domicílio bancário, ele bloqueia todo o seu fluxo de recebíveis naquela instituição – inclusive o futuro. O banco faz uma estimativa da geração de caixa e, com base nisso, concede à empresa um limite que, no geral, é equivalente a até cinco vezes o volume de recebíveis de cartões. É o que se chama “fumaça”. Funciona assim mesmo que a empresa não precise de todo esse montante de crédito e, por isso, o modelo é alvo de reclamação do varejo.
Outra mudança importante prevista no texto colocado em consulta pública prevê a possibilidade de os recebíveis de cartões serem dados em garantia de operações com fundos de investimentos em direitos creditórios (FIDCs) e até com fornecedores. Hoje, os recebíveis só podem ser cedidos a instituições do sistema financeiro nacional.
Dessa forma, um varejista de eletroeletrônicos poderá financiar a compra de televisores, por exemplo, com o fabricante – muitas vezes, gigantes globais que podem oferecer taxas inferiores às dos bancos.
“Espetacular” e “extraordinária” foram alguns dos adjetivos usados por executivos que atuam no setor para se referir à proposta do BC. Porém, uma dessas fontes disse que ainda é preciso cautela para saber como o projeto irá evoluir. O esboço apresentado fica aberto a comentários até o fim de novembro.
Representantes da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs) não foram localizados para comentar o assunto até o fechamento desta edição.
O Valor noticiou em julho que havia discussões para a criação da trava parcial em substituição à total, mas havia divergências quanto ao formato. Bancos e credenciadoras ligadas a eles defendiam um modelo em que todos os agentes do mercado aderissem a uma versão modernizada do Sistema de Controle de Garantias (SCG), que atualmente é onde se faz a leitura dos recebíveis de cartões.
Algumas credenciadoras independentes, no entanto, já vinham defendendo o modelo em que os recebíveis fossem registrados, e assim pudessem ser livremente negociados. Empresas como Stone, FirstData e, mais recentemente, Safra Pay, são adeptas dessa linha.
Já existe, no mercado, quem esteja disposto a atuar no registro desses ativos. A Central de Recebíveis (Cerc) tem um projeto-piloto de uma plataforma para fazer o registro de recebíveis de cartões de crédito. A companhia recebeu em agosto autorização do BC para atuar como registradora de recebíveis que poderão ser usados como garantia em operações de crédito a empresas.
“Com isso, espera-se que mais instituições entrem no mercado de recebíveis, aumentando a concorrência. Com mais segurança, concorrência e eficiência, o mercado poderá aumentar a oferta de crédito para os estabelecimentos comerciais, de forma mais barata”, afirmou o BC.
Também ontem, o BC regulamentou a constituição de ônus e gravames sobre ativos financeiros em entidades registradoras.