Banco Central prepara mudanças no cheque especial

O Banco Central está aprofundando estudos para mudar a estrutura de preços do cheque especial, permitindo que os bancos cobrem tarifas nessas operações para em troca oferecer juros mais baixos. O presidente do BC, Roberto Campos Neto, conta em entrevista ao Valor que o ponto de partida dos estudos é um diagnóstico, apresentado no Relatório de Economia Bancária, que mostra que clientes de baixa renda usam mais o cheque especial e os bancos extraem mais lucros dessas operações que seus pares no exterior.

Um dos problemas é a proibição da cobrança de tarifas nas operações no Brasil, que em outros países funciona como mecanismo de equalização. “Precisa de algum tipo de regulação em que fique claro para todo mundo que essa nova estrutura é para corrigir uma deficiência e que, na média, o custo para as pessoas vai cair”, diz Campos.

Na conversa que segue, Campos sustenta que a forma correta de estimular a economia é pela credibilidade da política monetária. “Eu vou lá e reduzo os juros, porque eu quero dar um impulso à economia. Provavelmente, o que vai ocorrer nesse cenário? A curva de juros vai inclinar, os juros futuros vão subir”, afirma.

Mas ele vê sinais positivos no mercado, avaliando que aumentou a confiança na aprovação da reforma da Previdência, o que leva à queda da inflação implícita nos títulos públicos e a uma melhora na curva de juros.

A seguir, os principais trechos da entrevista, realizada ontem no escritório do BC em São Paulo.

Valor: Nós estamos voltando para uma recessão?

Roberto Campos Neto: A gente teve na verdade o primeiro PIB negativo depois de oito trimestres. Obviamente é uma grande preocupação para o Banco Central entender o que está por trás dos números de crescimento. Eu diria que há dois ou três pontos importantes. O primeiro é que a gente sofreu vários choques. Eu sei que é difícil para as pessoas quantificarem o choque, ou entenderem o que é um choque, principalmente quando há um atrás do outro e essa sequência adia o investimento.

Valor: Quais foram os choques?

Campos: A gente veio do ano passado com o tema de normalização de juros nos EUA. Foi um tema que gerou uma saída de dinheiro de emergentes muito grande. No Brasil, o governo fez uma intervenção no câmbio, mas foi entendido naquele momento que era o remédio suficiente, se mostrou uma boa política. Quando veio recuperando, nós tivemos a greve dos caminhoneiros, um tema que parou o país. E, olhando ex-post, acho que ele foi pior não só como o “conduit” de crescimento mais baixo, mas também como credibilidade.

Valor: Por quê?

Campos: Porque a indústria não conseguia distribuir os produtos, as pessoas olhavam e não podiam sair de casa, não tinha gasolina no posto. Houve um efeito credibilidade grande, que tem uma consequência no consumo e no investimento. Quando as pessoas estavam se recuperando do efeito da greve dos caminhoneiros, houve o tema das eleições. A polarização foi bastante extrema, como a gente pôde ver, e essa polarização também teve efeito de adiar o investimento. Depois nós tivemos um governo novo – e houve Brumadinho [o colapso da barragem da Vale na cidade mineira, em janeiro]. E acho que houve um efeito também das pessoas entenderem um governo novo, com uma ansiedade de que algumas coisas seriam aprovadas rápido e coisas desse tipo. Houve todos esses choques sucessivos, que têm uma importância. Eles vão se dissipando, a gente colocou mais peso neles na primeira comunicação do que na comunicação mais recente. E há um tema que a gente tinha olhado no passado e acho que cresceu em importância. É difícil de quantificar, e a gente está olhando muito aqui.

Valor: Qual?

Campos: É a complementaridade entre o setor público e o setor privado. A gente está tentando fazer um trabalho para quantificar isso. Quando você conversa com os diversos setores, entende que muitos setores ao longo desses últimos anos passaram a fazer negócios com o governo de um modo ou de outro. A complementaridade entre o público e o privado subiu muito. O problema é que ela veio ou com planejamento do governo, ou com funding do governo, e a hora em que o fiscal bateu no muro, o governo teve que dar uma freada fiscal. Essa complementaridade fez com que a indústria privada também ficasse um pouco, vamos dizer assim, sem alternativas de curto prazo. Tem essa complementaridade que em alguns setores em que ela é mais clara, como a construção civil, que ainda não recuperou, em que a complementaridade foi ao extremo. Vários outros setores tiveram esse ponto.

Valor: Vocês estão tentando quantificar isso?

Campos: É, a gente está tentando quantificar e ver mais ou menos qual é o impacto. O diretor Carlos [Viana, de Política Econômica] está trabalhando nisso, mas o importante para a gente é mostrar que há esse efeito e que esse efeito se mostra mais importante do que a gente achava no passado.

Valor: Como isso afeta a atividade?

Campos: Eu sempre uso o exemplo do avião. Imagine que uma turbina é o mundo privado e a outra é o mundo público. Eu vou desligar a turbina do mundo público, mas, com credibilidade, vou ligar a turbina privada e vai ter uma transferência de energia de uma para a outra, ou de potência, e o avião vai continuar na mesma velocidade. A transferência de uma para a outra se dá na confiança, na credibilidade. A gente olha os índices de confiança, que até caíram recentemente, mas eles estavam relativamente altos. Isso dava a certeza de que, bom, o público vai desligar, mas com o novo governo, com credibilidade, com uma agenda positiva, essa energia, essa potência, vai se transferir. Isso não ocorreu na forma esperada.

Valor: Então o multiplicador fiscal é maior do que se imaginava?

Campos: Eu não chamaria de multiplicador [fiscal], eu diria a dependência do mundo privado no mundo público maior do que a gente imaginava. Eu não gostaria de falar de multiplicar fiscal porque fiscal tem outras implicações. Mas eu diria que essa complementaridade, olhando hoje, é bastante alta. Se o fiscal bateu no freio no federal, no estadual e no municipal ele bateu muito mais no freio. Se tem alguma indústria, alguma área produtiva, que estava fazendo negócios ou com Estados ou com municípios, também teve um impacto é muito grande. Teve essa trombada fiscal, essa parada no motor público muito rápido, acho que isso também explica parte…

Valor: Se o fiscal não anda, não é papel do juro suprir isso e dar mais estímulo para o setor privado andar?

Campos: Eu vou chegar nos juros, mas o papel dos juros hoje – na verdade, não é dos juros, é da credibilidade. O que a gente precisa ter é credibilidade. Saindo um pouco do tema do crescimento, indo para o tema do papel do BC, o principal papel do BC é ter credibilidade, manter os preços constantes, manter a inflação sob controle, com credibilidade, e ancorar a inflação num período mais longo.

Valor: Por que a credibilidade é tão importante?

Campos: Com a credibilidade eu consigo ancorar o curto prazo, o médio prazo e o longo prazo. E um outro tema muito importante da credibilidade é que, na verdade, quando a gente faz política monetária, quando a gente quer usar o instrumento de juros para gerar, para impulsionar o crescimento ou frear, a gente pensa nos seguintes termos. O importante é ter condições de liquidez. O que significa isso? Se eu quero fazer o país crescer, eu preciso injetar liquidez no sistema. Se eu acho que o país tem que frear, eu tenho que retirar liquidez. É importante entender que esse processo de gerar liquidez ou retirar liquidez não é apenas a Selic. A Selic é um instrumento, mas o conduit da Selic para que esse processo aconteça é a credibilidade. Eu posso estar num momento em que o mercado não tem mais credibilidade na minha política e a gente teve esse exemplo num país vizinho, na Argentina, há pouco tempo. E aí eu digo: olha, mesmo o mercado entendendo que provavelmente eu não vou bater a meta, eu vou lá e reduzo os juros, porque eu quero dar um impulso à economia. Provavelmente, o que vai ocorrer nesse cenário? A curva de juros vai inclinar, os juros futuros vão subir, a inflação implícita vai subir, o mercado vai entender que é uma solução de curto prazo, porque eu vou ter que subir os juros na frente. Nesse sentido eu injetei liquidez no sistema ou não? Não, eu não injetei. Apesar de ter feito uma mudança na Selic, eu não consegui atingir o meu objetivo, porque ele é atingido com credibilidade. A coisa mais importante é a credibilidade do BC.

Valor: Mas hoje o BC tem credibilidade.

Campos: Tem uma credibilidade alta. É importante ter credibilidade, mas a gente também tem que lembrar que as nossas revisões de crescimento para baixo não vieram acompanhadas de revisão de inflação para baixo. Nós não anunciamos número entre as reuniões, mas provavelmente vamos revisar o número de crescimento para baixo. O mercado está ao redor de 1%, já tem algumas casas falando num número próximo a 1%. Mas, se você olhar a inflação, [no caso de] grande parte das casas e a nossa própria revisão, ela está perto do que estava antes. A gente teve na verdade um movimento de revisão de crescimento para baixo que não veio acompanhado [de queda das projeções de inflação].

Valor: O crescimento tem sido muito baixo e os núcleos de inflação são benignos. O juro não está alto? A taxa estrutural (que permite a economia crescer sem pressionar a inflação) não seria menor ainda?

Campos: No caso do debate de juro estrutural, a gente no BC não anuncia. Todo mundo tem um estudo. É uma variável superdifícil de medir, de comparar. Os núcleos estão num nível que a gente chamou na última ata de confortável e depois mudou para apropriado. Ele deu um “tiquezinho” para cima, no último mês, e agora manteve mais ou menos em linha. Se a gente pega o índice de difusão, ele está acima do momento mais deflacionário, mas ainda em níveis confortáveis abaixo da meta. Quando a gente olha para os números da inflação, a gente vê mais ou menos uma continuidade do que a gente vinha vendo. Em termos do que o que levaria a uma interpretação diferente, a gente tem narrado os três fatores. A capacidade ociosa, a parte externa e a parte que a gente chama a parte estrutural, local, da agenda de reformas. Acho que o importante para a gente é que nós não podemos trocar o crescimento de curto prazo por inflação futura. Para nós é importante a credibilidade. O canal de credibilidade é ter a inflação ancorada, ter expectativa futura bem controlada. Nesse sentido, eu volto a dizer que é importante acompanhar a linguagem que a gente tem adotado na ata. Não é verdade, não é um bom ângulo a afirmativa de que o BC não está preocupado com o crescimento – é o contrário. O BC está preocupado com o crescimento, e a melhor forma de contribuir para o crescimento é ter credibilidade. Nós vivemos um episódio recente em que baixamos os juros quando o mercado não acreditava que deveria baixar, quando a sociedade não entendia que esse era o principal problema. A gente teve, mesmo com juros para baixo, um aperto de condições financeiras, a gente teve uma sequência de vários meses em que a inflação era para cima e o crescimento era para baixo. Nós vivemos isso há algum tempo. Perder credibilidade é muito mais fácil do que ganhar.

Valor: A confiança na economia caiu e as projeções do PIB também. Se o corte de juros demorar, não pode comprometer o crescimento do ano que vem?

Campos: Não adianta a gente falar de crescimento sem falar de expectativas de inflação. A expectativa de inflação tem melhorado recentemente? Hoje [ontem], o Focus caiu para 4,03%, caiu um pouquinho. Mas, se você pegar a revisão do crescimento com a revisão de inflação, verá que a revisão de crescimento foi para baixo, e a revisão de inflação, nem tanto. Temos uma inflação mais longa que está perto da meta ainda. Respondendo se é cedo ou tarde, não podemos fazer um movimento precipitado que tenha uma perda de credibilidade. Nós estamos sempre enumerando os três fatores: parte externa, parte das reformas, e parte da capacidade ociosa. A capacidade ociosa tem se revelado pior do que a gente esperava? Sim. Muito provavelmente nós vamos fazer uma revisão para baixo também. Nossas revisões são sempre no Relatório de Inflação. Mas acho que o mercado está caminhando para um número mais baixo. Nosso último número era 2% no último relatório.

Valor: A reforma da Previdência é a mãe de todas as reformas. Ela não pode ser um choque positivo?

Campos: O BC não faz previsões sobre isso, mas olhando os parâmetros de mercado, os preços, o mercado recentemente ficou um pouco mais confiante nas reformas. A gente pega as inflações implícitas e caíram, as taxas de juros estão mais planas lá na frente. Acho que o mercado ficou um pouco mais otimista. Nós trabalhamos com um cenário na linguagem oficial, que a gente não muda, que a reforma vai ser aprovada. É difícil falar de timing e quantidade, mas a gente acha que a reforma vai ser aprovada. Acho que esse vai ser um elemento importante. Também temos o cuidado de dizer que falamos em reformas, e não só uma reforma. O importante para o Banco Central é como essas variáveis nos impactam no canal da inflação, pelo canal da credibilidade. Olhando as variáveis de mercado, parece que teve um ganho nesse sentido nos últimos tempos, ou porque a sociedade entendeu que está mais perto de um acordo ou porque entendeu que a parte política melhorou.

Valor: Por que o sr. perguntou num painel de ex-presidentes do BC no seminário de metas de inflação se a reforma da Previdência poderia ser contracionista se a última ata do Copom diz que é expansionista? O sr. está em dúvida?

Campos: Não tenho dúvida. Na verdade, foi uma pergunta feita num âmbito acadêmico. Tem um trabalho que foi apresentado naquele seminário do professor [da Universidade Bocconi, Francesco] Giavazzi que mostra exatamente que os planos fiscais com redução de gasto têm uma capacidade expansionista, enquanto que os planos fiscais que tem aumento de impostos têm capacidade contracionista. Nosso cenário é que [a reforma da Previdência] é expansionista. Temos mencionado na ata. São dois pesos em uma balança. O elemento credibilidade e o elemento fiscal que ele causa de ter menos dinheiro nas mãos dos aposentados. Nos acreditamos que o elemento credibilidade é maior que o fiscal.

Valor: E o que o BC poderá fazer para baixar os juros do cheque especial?

Campos: Uma grande parte dos usuários do cheque especial ganha abaixo de dois salários mínimos e, para eles, representa um grande comprometimento de renda, ao pagar 310% de juros. Em termos de produto financeiro, temos 1% da carteira, que é cheque especial, responsável por 10% do resultado dos bancos. Em outros países, o cheque especial dá prejuízo ou uma rentabilidade bem menor, de 2,5%, digamos. Tem um juro maior, mas também uma inadimplência maior, porque é a categoria emergencial.

Valor: Por que isso ocorre?

Campos: O cheque especial acaba sendo um produto de subsídio cruzado. Em grande parte desses outros países, o cheque especial é um produto de maior risco, com juros maiores, que tem um retorno menor. Mas também tem um pedaço do retorno que vai para a cadeia toda que são tarifas. No Brasil, não temos a tarifa nos produtos de uso emergencial. Não ter tarifa significa que o produto acaba sendo regressivo. Nos outros países, a estrutura de tarifa equaliza isso. Uma das coisas que estamos discutindo é que não adianta falar que vou colocar tarifa e baixar os juros, mas no final o custo ser maior. Se eu quiser fazer realmente com as tarifas um plano linear ou progressivo, em que as pessoas de baixo pagam menos ou proporcionalmente, eu tenho que mostrar de forma clara e com credibilidade que o cheque especial mais a nova tarifa terá um custo menor do que temos hoje. Precisa de algum tipo de regulação em que fique claro para todo mundo que essa nova estrutura é para corrigir uma deficiência e que, na média, o custo para as pessoas vai cair. Outro ponto importante é a educação financeira.

Valor: O que o sr. acha da proposta do Arminio Fraga de o BC ter entre os seus objetivos a suavização do ciclo econômico?

Campos: Sou contra. Acho que a intenção do Arminio é que, dado que o BC já faz de uma forma indireta, porque não colocar na lei para ganhar um grau de confiança a mais. Eu acho que é o contrário. Colocar uma coisa na linguagem de lei que é vaga, porque suavizar ciclos é uma coisa vaga, poderia levar a uma interpretação diferente do que seria o lógico. Então, dado que é uma coisa que você já faz, e que colocar isso te gera uma vulnerabilidade, um custo, sem nenhum benefício, acho que não deveria. Na hora que vai ser discutido no Legislativo, as pessoas podem ter uma interpretação diferente do que é suavizar ciclos. A forma de o BC estimular o crescimento sustentado de longo prazo é a estabilidade da moeda e a solidez do sistema financeiro.

Fonte: Valor Econômico