Bancos públicos poderão ser liquidados

Projeto de lei submete instituições ao mesmo regime dos privados

O projeto de lei de resolução de crises bancárias enviado pelo governo ao Congresso submete os bancos públicos federais ao mesmo regime que seus concorrentes privados. Instituições estatais poderão ser liquidadas, o que hoje não acontece.

A mudança tem uma série de implicações. A mais palpável é uma possível alta no custo de dívida dos bancos, sobretudo aqueles controlados pela União, como Banco do Brasil (BB), Caixa e BNDES. No modelo atual, essas instituições tradicionalmente têm um prêmio de risco menor que o dos pares privados porque se beneficiam da percepção implícita de que não quebram, já que têm por trás o governo e sua capacidade de “imprimir” dinheiro.

Os bancos públicos federais não estão sujeitos à atual lei das liquidações extrajudiciais, que será revogada caso o novo projeto seja aprovado. A proposta encaminhada ao Legislativo na segunda-feira estabelece um roteiro a ser seguido por todas as instituições financeiras – independentemente da natureza do controle -, seguradoras e provedores de infraestrutura de mercado em caso de insolvência.

Discutido ao longo de seis anos, o projeto de lei determina que deficiências patrimoniais sejam cobertas primeiro com dinheiro de acionistas e credores. O texto permite o uso de recursos públicos em operações de socorro, mas só depois que todas as alternativas tiverem se esgotado e o Banco Central (BC) detectar que há risco sistêmico. O modelo incorpora aprendizados trazidos pela crise financeira de 2008. Naquele momento, os governos americano e da Europa gastaram centenas de bilhões de dólares para resgatar instituições “grandes demais para quebrar”, o chamado “bailout”.

Para que tamanho prejuízo aos contribuintes não voltasse a acontecer, organismos internacionais passaram a recomendar o “bail-in”, em que o resgate é feito primordialmente com o uso de ações e conversão de dívidas para amortecer perdas. O Brasil se comprometeu a adotar essa prática perante o G-20, grupo dos 20 países mais desenvolvidos, ainda no governo de Dilma Rousseff. O projeto avançou no mandato de Michel Temer e, no fim de 2017, já contabilizava mais de 70 versões, mas acabou paralisado por causa das eleições. Foi só agora que BC, Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e Superintendência de Seguros Privados (Susep) conseguiram concluí-lo.

“A legislação nos alinha com melhores práticas internacionais e nos ajuda a lidar com mais celeridade e menos custos”, afirma o chefe do departamento de resolução e ação sancionadora do Banco Central, Climério Pereira.

Para o advogado e professor da FGV Jairo Saddi, que trabalhou na elaboração do projeto, o texto ainda será objeto de muita discussão, mas representa “um avanço” no tratamento de crises bancárias, pois cria um processo ordenado e evita o uso de dinheiro público. Ele lembra que o Brasil já gastou R$ 1 trilhão para socorrer instituições quebradas nos últimos 50 anos. “A proposta organiza a solução de crises, separa quem tem importância sistêmica e melhora o ambiente”, diz.

Antecipada na tarde de segunda pelo Valor PRO, serviço de notícias em tempo real do Valor, o projeto de lei complementar reduz de três para duas as formas de intervenção em casos de insolvência. Haverá o regime de estabilização e o regime de liquidação compulsória. Deixam de existir a liquidação extrajudicial, a intervenção e o Regime de Administração Temporária (Raet).

Pelo projeto, o capital investido pelos acionistas na instituição financeira será o primeiro colchão para absorver prejuízos no caso de decretação de um regime de estabilização. O capital será consumido até chegar a um valor simbólico de R$ 1. Se isso não for suficiente para recompor os níveis mínimos de capital da instituição financeira, o rombo passa a ser coberto pelos instrumentos de dívida subordinada, também até R$ 1. Em seguida, vêm os grandes depositantes. Estarão protegidos os créditos cobertos pelo Fundo Garantidor de Créditos (FGC), depósitos judiciais e créditos detidos pelo FGTS.

Se os créditos privados dentro do próprio balanço do banco forem insuficientes, poderão ser usados recursos do sistema bancário. Será criado um fundo de resolução de crises bancárias com contribuições das instituições financeiras administrado pelo FGC, com patrimônio apartado do fundo que paga o seguro depósito e faz assistência financeira de liquidez aos bancos.

Os recursos públicos podem ser usados de duas formas, se não houver recursos privados suficientes para resgatar o banco. Primeiro, por meio de empréstimos do Tesouro ao fundo de resolução de crises bancárias. Neste caso, o Tesouro terá uma espécie de garantia do FGC dos recursos usados no socorro. Outra alternativa é a concessão de empréstimo direto ou capitalização temporária da instituição financeira pela União. Serão definidas condições e limites para essas operações.

Os bancos públicos terão de resolver suas crises por meio das etapas do “bail-in”. Conforme o projeto, eles não poderão receber empréstimo do fundo de resolução nem os aportes diretos da União. A lógica é que, por serem estatais, já receberiam recursos do Tesouro nos estágios anteriores, numa eventual recapitalização. No limite, o governo poderia até mesmo perder o controle dessas instituições numa crise, dependendo da estrutura de capital próprio e de terceiros e da decisão do Tesouro Nacional e do Congresso sobre recapitalizar ou não a instituição.

Como a regra vai mostrar até onde o setor público pode ir, injeções de recursos como as que o governo já fez em BB e Caixa em décadas passadas devem se tornar bem mais difíceis. Pelo menos em tese, não é mais um bolso “infinito”, e é isso que deve mudar a percepção de risco dos investidores. “O projeto permite que instituições públicas e privadas sejam tratadas de formal igual, e isso tem consequências práticas”, diz Saddi.

O “bail-in” ainda foi pouco testado no mundo todo. Houve experiências apenas nas crises do Chipre e da Irlanda. Mas, segundo Pereira, do BC, a experiência internacional com o “bailout” mostrou que são muito altos os custos de intervenção para evitar quebras de bancos ou para atenuar os impactos no sistema financeiro. “A crise de 2008 nos obrigou a voltar ao tema da regulação em situações de quebras bancárias”, afirmou.

“Agora, estamos estabelecendo as regras para a eventualidade de uso de recursos públicos”, disse Pereira, acrescentando que o objetivo é evitar a repetição de um Proer – programa de socorro feito no governo FHC, nos anos 90.

Uma mudança no projeto enviado ao Congresso é que ele se refere aos bancos e companhias sujeitas à lei como pessoas jurídicas e não como instituições financeiras. Com isso, o texto pode abarcar novas empresas que estão surgindo no mercado financeiro, como as “fintechs”. (Colaboraram Fabio Graner e Matheus Schuch, de Brasília)

Fonte: valor econômico