Endividamento dos brasileiros cresce mais que no resto da América Latina

Levantamento do Grupo Allianz, obtido com exclusividade, mostra que as dívidas das famílias brasileiras aumentaram 11,2% em 2020 e respondem por 55,8% do total da região

Apesar do crescimento da poupança durante a pandemia de covid-19, a dívida das famílias brasileiras aumentou 11,2% em 2020, mais rápido do que o visto em outros países da América Latina, à exceção da Argentina, “dominada pela inflação”, destaca o Grupo Allianz, na 12.ª edição do Relatório de Riqueza Global, obtida com exclusividade pelo Estadão/Broadcast.

Como resultado, as famílias aqui arcam com mais dívidas do que o conjunto de Chile, Colômbia, México, Peru e Argentina – a razão dos passivos domésticos brasileiros em relação a dos outros países passou de 117% em 2019 para 126%. Isso quer dizer que o endividamento das famílias no Brasil é mais da metade (55,8%) do total da região.

Segundo o grupo Allianz, as dívidas das famílias latino-americanas avançaram 67 bilhões de euros em 2020, alcançando 960 bilhões de euros, um aumento de 7,5% ante 2019. Depois do Brasil, o México é outro “peso pesado” quando se trata de dívidas das famílias na região, com 165 bilhões de euros. Juntos, os dois países representam 73% do passivo na América Latina.

No Brasil, a dívida das famílias em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) chegou a 46% no fim de 2020, maior do que em 2019 (41%). Além disso, a média de crescimento na última década, de 10%, é muito maior do que a nível global (4%).

Mas Arne Holzhausen, chefe de Seguros, Tendências e Pesquisa ESG do Allianz SE, pondera que a razão não é “alarmante”. Está abaixo da media dos mercados emergentes (49%) e dos níveis da China (61%), Malásia (93%) e Tailândia (89%).

O aumento da dívida concomitante ao crescimento da poupança em 2020 não é uma exclusividade do Brasil, mas um fenômeno mundial durante a pandemia, segundo Holzhausen. “Enquanto os depósitos bancários disparavam, os passivos continuaram a crescer mais ou menos no ritmo de 2019 (11,9% no Brasil). Como muitas famílias não foram financeiramente impactadas pela pandemia, elas continuaram a fazer empréstimos, seja para casas ou bens de consumo duráveis como carros”, diz, citando o boom global no setor habitacional.

O relatório ainda destaca que os empréstimos ficaram mais atrativos no mundo diante das taxas de juros nas mínimas históricas. No mundo, as dívidas das famílias cresceram 5,4% em 2020, para 46,3 trilhões de euros – ritmo parecido com o de 2019 (5,5%). No relatório, o grupo Allianz destaca que o crescimento da dívida em emergentes foi maior do que nos países desenvolvidos, padrão que já se repete há alguns anos.

Avanço na riqueza global

Depois de alcançar a marca inédita de 200 trilhões de euros em 2020, a riqueza global, medida pelo agregado de ativos financeiros, deve ter novo salto este ano, conforme as previsões da Allianz Research, “à exceção de uma queda brusca das Bolsas nos últimos meses do ano”.

Graças ao avanço da vacinação, à recuperação da economia global e aos estímulos fiscais e monetários ainda em vigor no mundo, o grupo prevê avanço de 7% do montante de depósitos bancários, apólices de seguros e fundos de pensão, títulos de renda fixa, ações e fundos de investimento detido pelas famílias de 57 países (mais de 90% do PIB global).

Segundo relatório do grupo, em 2020, “somas inimagináveis” em incentivos permitiram que o agregado da riqueza das famílias resistisse à maior crise econômica desde a Segunda Guerra Mundial e crescesse 9,7%, 11,6 ponto porcentual acima do PIB global. Assim, pela primeira vez, os ativos financeiros globais alcançaram 300% do PIB mundial.

Junto com as quantias enormes de transferências sociais, a “economia forçada” foi o principal vetor do crescimento dos ativos financeiros em 2020, já que os cuidados necessários para evitar a disseminação do vírus impediram que as famílias gastassem seus orçamentos conforme estavam habituadas.

As novas poupanças avançaram 78%, para 5,2 trilhões de euros em 2020, um recorde absoluto, sendo que ao menos metade em todos os mercados considerados teve como destino os depósitos bancários.

Esses depósitos, que não requerem uma decisão ativa de investimento, apenas são mantidos na conta, cresceram no ano passado a uma taxa de dois dígitos (11,9%) pela primeira vez na história. Os Estados Unidos foram o principal destaque, com aumento de 374% desse fluxo. Assim, o país passou a responder por 51% de todos os novos depósitos no mundo, de 31% em 2019. No Brasil, os ativos financeiros brutos detidos pelas famílias aumentaram 13,2% em 2020, com avanço de 28,4% dos depósitos bancários, o mais forte desde 2010.

“Os números principais são muito impressionantes. Mas devemos cavar um pouco mais fundo. A maioria das famílias não poupou realmente, simplesmente depositou seu dinheiro”, diz Ludovic Subran, economista-chefe do grupo Allianz. “Meu medo é que, se as famílias começarem a desperdiçar, o dinheiro acabará no ‘consumo de vingança’ e apenas alimentará a inflação. Precisamos urgentemente de uma nova ‘cultura de economia’.”

Arne Holzhausen ressalta que a recuperação da covid-19 está “entrando em águas turbulentas”, já que os gargalos na cadeia de abastecimento e as crises de energia não serão resolvidos rapidamente. “Portanto, é muito provável que muitas famílias mantenham suas economias, em particular se os preços mais altos dos bens e da energia reduzirem seu poder de compra.”

Desigualdade

Embora o grupo Allianz ressalte que o “hiato de prosperidade” no mundo tenha se reduzido em 2020, com o crescimento maior dos ativos financeiros líquidos (ativos financeiros menos os passivos) em países emergentes (13,1%) ante o avanço nos desenvolvidos (10,4%), é evidente que os EUA se destacam quando o assunto é riqueza.

No país, os ativos financeiros per capita cresceram 26,280 mil euros em 2020, quase o patrimônio da Grécia quando dividido pelo tamanho da população. “Poupadores de nenhum outro país foram capazes de conseguir tamanho aumento da riqueza”, destaca o relatório. O total per capita dos EUA chegou a 260,580 mil euros, o que, porém, o deixa aquém dos mais ricos do mundo: os suíços, com um patrimônio per capita quase 100 mil euros superior ao dos americanos.

Ainda assim, a média per capita dos ativos financeiros nos EUA é 7,2 vezes maior que a média global (35,970 mil euros). Esse desempenho contrasta com o da Europa Ocidental, cujos ativos financeiros per capita são de 99,270 mil euros per capita – 2,8 vezes a média global no ano passado (contra 3,5 vezes em 2000).

Enquanto as famílias da América do Norte detém quase metade de todos os ativos financeiros privados (45,8%), a Europa Ocidental tem 21%, a Ásia, sem o Japão, fica com 19,3% e a América Latina, com 1,8%.

Cicatrizes de longo prazo

O grupo Allianz também avalia que a distância entre os países desenvolvidos e emergentes deve voltar a se alargar assim que acabar a ajuda do Estado no contexto da pandemia de covid-19. O mesmo deve valer para a desigualdade dentro dos países, especialmente considerando que as perdas educacionais devem dificultar a mobilidade social.

“A pandemia é um desafio muito maior para os países em desenvolvimento. Muito provavelmente, a covid-19 continuará a travar o desenvolvimento econômico nesses grupos de países por muito mais tempo do que nos mercados avançados”, comenta Patricia Pelayo Romero, coautora do relatório.

Mas ela destaca que o verdadeiro desafio vem depois, uma vez que esses países se encontrarão em um mundo pós-pandêmico, que tornará cada vez mais difícil para eles exercerem suas vantagens comparativas de maneira comprovada, dadas as mudanças duradouras nas tecnologias, nas políticas e nos estilos de vida. “O fechamento gradual do hiato de prosperidade global – o desenvolvimento definidor das últimas décadas – não pode mais ser tomado como algo certo.”

Fonte: O Estado de São Paulo