Para economistas, pico da inadimplência relacionada a inflação elevada e juros em dois dígitos ainda não foi atingido
A quantidade de brasileiros com dívidas atrasadas caminha para patamares recordes nos próximos trimestres. De acordo com especialistas ouvidos pelo Valor, embora o número de pessoas que têm falhado em pagar contas ou parcelas já tenha atingido o maior nível da história no primeiro semestre, essa medida vai continuar a subir e pode atingir um pico só em 2023.
O cenário tem sido fortemente influenciado pelas condições macroeconômicas, com inflação elevada e juros em dois dígitos. A combinação desses fatores leva a uma redução do poder de compra e da renda dos trabalhadores, ao mesmo tempo que torna as dívidas mais caras.
Segundo o sócio-diretor da holding MGC, especializada em recuperação de crédito, Eduardo Martins, “2022 já bateu o recorde de volume de carteiras [de dívidas inadimplentes] transacionadas no mercado e, em apenas meio ano, já passamos do volume inteiro de 2021”. O segundo semestre, avalia o especialista, tende a manter o ritmo de crescimento, com “a chegada ao mercado de carteiras [de crédito com atraso] muitos grandes”.
Uma pesquisa da MGC mostra que, em abril, o equivalente a 97% da população economicamente ativa do país tinha algum tipo de inadimplência. O levantamento combina dados públicos da Serasa Experian, que consideram apenas dívidas vencidas com até cinco anos, com os da própria gestora, que detém uma base de 37,7 milhões de CPFs, dos quais 27,5 milhões exibem atrasos acima do teto do birô de crédito e ficam de fora do conjunto dos negativados.
Conforme o estudo, o saldo das bases contratuais desse grupo, que soma 93,5 milhões de CPFs, alcança R$ 897,8 bilhões. Com juros e mora, o valor total da dívida atrasada dos brasileiros passa de R$ 1 trilhão.
No boletim mais recente da Serasa, de abril, a quantidade de pessoas físicas com parcelas não pagas atingiu o recorde da série histórica, que começa em 2016, com 66,1 milhões de CPFs negativados. “O número nunca tinha passado dos 66 milhões e ocorreu pela primeira vez em abril”, pontua o economista da Serasa Experian, Luiz Rabi. A má notícia é que essa quantidade vai continuar a crescer.
Novas máximas de negativados devem ocorrer ainda neste trimestre e, talvez, até o fim do ano, projeta Rabi. “A combinação de inflação e juros altos está provocando um ciclo de aumento da inadimplência que não se encerrou”, afirma. Essa elevação “vai continuar ao longo do próximo trimestre ou até o fim do ano”.
Na análise do professor de Finanças do Insper Michel Viriato, “o pico da inadimplência ainda não chegou”. O especialista explica que o auge dos atrasos em pagamentos de dívidas costuma ocorrer no “vale” do crescimento, ou seja, quando a economia atinge o ponto mais fraco.
Para Viriato, esse “vale” vai ocorrer em 2023. “Temos uma economia ainda em crescimento no segundo semestre e uma melhora de curto prazo, porque o governo estará despejando muito dinheiro na economia por meio da PEC que vai bonificar algumas classes. A gente talvez visse o vale do crescimento em meados deste ano, mas provavelmente isso vai ficar para o próximo.”
A Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) realizada pela Confederação Nacional do Comércio (CNC) mostra quadro semelhante. Em junho, o percentual de famílias endividadas atingiu o terceiro maior nível da série histórica, iniciada em 2010, de 77,3%. As duas maiores taxas ocorreram em abril e maio, de 77,7% e 77,4%, respectivamente.
Os dados da Peic mostram ainda que, desde julho de 2021, a taxa de endividamento tem marcado recordes, com os 12 níveis mais elevados da série histórica, sempre acima de 71%. O percentual de famílias brasileiras com contas atrasadas atingiu em abril e maio de 2022 o maior nível desde agosto de 2007, com taxas de 28,6% e 28,7%, respectivamente. Em junho, o indicador permaneceu muito próximo, aos 28,5%.
Segundo o economista da Serasa, o ciclo de inadimplência se acentuou a partir do início do quarto trimestre de 2021, quando a inflação passou ao patamar de dois dígitos. “A inflação reduz a capacidade de pagamento e isso faz com que pessoas que estavam pagando normalmente não consigam mais”, considera.
Conforme Viriato, do Insper, “é bem provável que tenhamos um pico de inadimplência maior do que na recessão anterior”. Para o especialista, “um fator de pressão é que a alta de juros deve continuar e o Banco Central pode ter de manter os juros em dois dígitos até o fim de 2023”. Conforme o pesquisador, “vamos ver a inflação cair nos próximos meses como reflexo da redução do ICMS [sobre preço dos combustíveis], mas o BC terá de manter a Selic elevada por mais tempo, porque estamos empurrando inflação para o ano que vem”.
A subida dos juros tem encarecido o crédito e elevado muitas dívidas, como as de cartão de crédito e de cheque especial. De acordo com pesquisa mensal da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), de maio do ano passado para o mesmo mês em 2022, a taxa mensal média do cartão de crédito subiu 1,82 ponto percentual, saindo de 11,97% para 13,79%, ou seja, ficou 15,2% mais cara.
No caso do cheque especial, o custo mensal médio subiu de 7,30% para 7,94% na mesma base. Trata-se de um aumento de 8,76%. Os juros do comércio, em média, avançaram de 4,76% para 5,27% ao mês, com elevação de 10,71%.
Segundo a Anefac, a taxa mensal média do cartão de crédito em maio é a maior desde abril de 2017. No cheque especial, o custo é o maior desde dezembro de 2019, enquanto no comércio os juros estão no patamar mais elevado desde junho de 2018.
Dados da Peic mostram que, em termos de tipo de dívida, o cartão de crédito ocupa, disparado, o topo da lista das linhas detidas pelas pessoas físicas. Em junho, 86,6% declararam usar essa modalidade, ante uma média da série histórica da Peic de 76,6%.
Em segundo, aparecem os carnês de crediário, com 18,3%, seguidos de financiamento de automóveis, que alcança 10,8% dos entrevistados. Financiamento de casa e cheque especial fecham a lista das cinco categorias mais recorrentes, com 8% e 5,7%.
Números do Banco Central mostram uma taxa de inadimplência de pessoas físicas para a carteira de crédito total das instituições financeiras de 3,33% em fevereiro – o último número disponível. A série da autoridade sinaliza uma tendência de alta que vem desde junho de 2021, quando marcou taxa de 2,88%. A inadimplência em fevereiro é a mais elevada desde os 3,47% de julho de 2020. A máxima histórica ocorreu em maio de 2012, com uma taxa de 5,51%. Na ocasião, a expansão excessiva do crédito causou uma onda de superendividamento entre consumidores.
Quando se olham os dados do BC de atrasos de curto prazo, entre 15 e 90 dias, há um cenário um pouco mais apertado nas dívidas mais caras. No caso do rotativo do cartão de crédito, por exemplo, as taxas de dezembro de 2021 e janeiro de 2022 são as mais altas da série histórica, que começa em 2011, com 19,48% e 19,71%, respectivamente. No último dado disponível, o de fevereiro, o percentual recuou para 18,12%, ainda assim um resultado que figura entre os 12 mais elevados dos 131 meses da série.
Na análise de Rabi, da Serasa, a crise atual não tem raízes no superendividamento, como no passado, mas sim na perda de poder aquisitivo e encarecimento do crédito. “No início da pandemia, os estímulos ajudaram a fazer com que a inadimplência caísse. Entre janeiro e dezembro de 2020, a quantidade de negativados caiu 2,4 milhões de CPFs. O auxílio emergencial e os juros historicamente baixos, que facilitaram renegociações, fizeram a diferença.”
Para o economista, quando a inflação superou os dois dígitos, de outubro para cá, esse comportamento se inverteu. “E não foi por superendividamento. Não estamos vivendo uma expansão frenética do crédito. É uma questão de perda do poder aquisitivo, além de encarecimento e restrição do crédito, com as instituições sendo muito mais cautelosas na concessão.”
A eventual divergência entre os dados do BC e da Serasa ocorre, principalmente, por conta do perfil das dívidas anotadas pelo birô. No caso das pessoas físicas, cerca de 60% da falta de pagamentos acontece fora do sistema bancário. “São atrasos, por exemplo em contas de água, luz, telefone, ou problemas de crediário no varejo e relacionados a empresas prestadoras de serviços de modo geral.” Os outros 40% dos negativados referem-se a bancos, cartões e financeiras.
Outra diferença é que o regulador financeiro considera como inadimplência os atrasos superiores a 90 dias, enquanto o birô de crédito enxerga as negativações. A taxa relacionada à carteira total de crédito reflete ainda uma média de linhas bancárias que incluem aquelas sem garantia, como cartão de crédito e cheque especial, mas também modalidades que apresentam, historicamente, baixo índice de inadimplência, como consignado e financiamento imobiliário.
“A inadimplência, quando começa a subir, tem início, em geral, fora dos bancos”, diz o economista da Serasa Experian. “As pessoas começam a atrasar pagamentos no setor não bancário, porque tentam preservar ao máximo cartão, limites e cheque especial.”
Fonte: Valor Econômico