O candidato Ciro Gomes propôs “zerar” o número de pessoas com nome sujo, os chamados negativados. De acordo com o SPC, são mais de 60 milhões de pessoas, algo em torno de 30% da população do país. Vale lembrar que o Brasil não trilhou sozinho o caminho do sobre-endividamento pessoal. Dados divulgados pelo jornal Washington Post revelam que 33% dos americanos possuem créditos não pagos e que se encontram em algum tipo de processo formal de cobrança.
Diversos fatores estão associados à escalada de endividamento familiar que leva à negativação. A falta de educação financeira é geralmente apresentada como a principal explicação. Sem dúvida, isso é importante e deve ser endereçado no desenho das soluções. Entretanto, é preciso levar em consideração também as características da oferta de crédito no Brasil. Primeiramente, vale lembrar que a importância relativa do crédito na vida das pessoas aumentou substancialmente nos últimos anos. O volume total de crédito do sistema financeiro corresponde hoje a cerca de 47% do PIB, quase o dobro do que se observava (24% do PIB) em 2003-2004. Isso tudo a despeito da crise econômica.
Ademais, grande parte do montante turbinado de crédito direcionou-se à população de baixa renda. Uma das explicações relaciona-se ao uso dos correspondentes bancários. A distribuição de serviços financeiros aos mais pobres demanda canais de distribuição alternativos às agências bancárias. Estas geralmente se situam nas regiões de maior poder aquisitivo, o que exclui, sobretudo, as periferias das grandes cidades e as zonas rurais.
As origens do modelo dos correspondentes na sua versão atual remetem ao final da década de 90, no âmbito de medidas que visavam aprimorar a logística de pagamento de benefícios sociais. As ações tomadas propiciaram, através do uso das lotéricas, o pagamento dos benefícios em um número muito maior de localidades. Paralelamente, a nova regulamentação criou espaço para transformação de farmácias, pequenos mercados e outros pontos varejistas em correspondentes. Entre 2000 e 2015, o modelo cresceu a uma taxa anualizada de 14,5%. Os detalhes da expansão fogem ao escopo aqui pretendido. Importa salientar que os correspondentes passaram a incluir milhares de vendedores de crédito, os chamados “pastinhas”, devotados a ofertar empréstimos para a baixa renda em todo o país, o que impulsionou o endividamento.
Ainda nas características da oferta, é necessário relembrar a expansão dos cartões de crédito dos últimos 15 anos. Inicialmente, parcerias entre empresas de cartão e redes de varejo ampliaram a capacidade de angariar novos clientes das classes CDE para o mundo do dinheiro de plástico, sendo que muitos desses entrantes não eram bancarizados, o que trazia oportunidades de mercado atrativas para os bancos.
Dando um salto no tempo, estima-se que, atualmente, cerca de 33% do consumo das famílias envolvem movimentações através de cartões, que são utilizados não somente como meio de pagamento, mas também como fonte de crédito.
As taxas de juros nos empréstimos via cartão de crédito são em geral muito altas e isso guarda relação com o risco envolvido. Entretanto, é preciso considerar também o contexto de elevada concentração bancária e pouca concorrência, que também afeta os juros cobrados. Portanto, a outra face da expansão dos empréstimos é a montanha de endividamento das classes CDE a juros elevados, compondo um quadro que ganha cores mais sombrias quando inserido em um quadro de alto desemprego e recessão.
Voltando à ideia de “limpar o nome” dos endividados, os aprendizados proporcionados pela trajetória do microcrédito no Brasil e em outros países podem aprimorar a discussão. Os dados mostram que o valor médio da dívida dos negativados é semelhante aos montantes de operações típicas de microcrédito. Haveria, portanto, a possibilidade de uma renegociação acoplada a um novo empréstimo.
Contudo, sem a adoção de uma tecnologia de crédito adequada, que crie incentivos para o repagamento, a medida pode ser contraproducente. Os mais pobres podem até receber um salva vidas temporário, mas ficarão novamente à deriva se voltarem a ficar inadimplentes por conta do novo empréstimo, mesmo sob taxas de juros mais favoráveis do que aquelas anteriormente vigentes. Vários programas de crédito com juros subsidiados naufragaram justamente por ignorar os incentivos criados por juros artificialmente baixos.
Por outro lado, as inovações do microcrédito, notadamente o uso de empréstimos em grupo e agentes de crédito, têm produzido bons resultados em termos de controle de inadimplência e taxa de recuperação. O risco moral pode ser mitigado por um acompanhamento adequado, que pode ainda ser complementado por inovações advindas dos estudos de economia e finanças comportamentais, caso do envio de mensagens (nudges) que busquem influenciar um comportamento financeiro mais saudável. Obviamente, nem todos os negativados podem ser aprovados para o novo financiamento. Afinal, há bons e maus pagadores em todas as classes sociais.
As evidências mostram que a implementação de tecnologias de microcrédito não é tarefa trivial, fato que colide com soluções fáceis para problemas complexos. Seria adequado começar realizando estudos-piloto em instituições que já detém experiências exitosas, como é o caso do Banco do Nordeste. A escala viria em um segundo momento. As fintechs interessadas poderiam contribuir. Apesar de ainda muito pequenas, elas crescem em um ritmo elevado e são mais ágeis na adoção de modelos inovadores de análise de risco de crédito. Além disso, já existe uma regulação do Banco Central que delimita especificamente a atuação de fintechs de crédito.
Em suma, a despeito dos arroubos retóricos de qualquer campanha eleitoral, é possível buscar soluções adequadas para o sobre-endividamento conjugando soluções já existentes com inovações baseadas em evidência. Iniciativas bem desenhadas podem dar mais eficiência ao mercado de crédito e, simultaneamente, algum alento aos negativados.
Lauro Gonzalez, professor da Eaesp-FGV, é coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV