Peço desculpas aos leitores habituais desta coluna por voltar, pela terceira vez, ao mesmo tema. Refiro-me à interpretação equivocada que se faz sobre a conta de juros da dívida pública e seus impactos no rombo fiscal. Ocorre que meus colegas economistas continuam confundindo valores nominais com valores reais e, por causa disso, propondo medidas equivocadas para sustar o crescimento descontrolado da relação dívida/PIB.
Nos últimos 12 meses encerrados em outubro, o Banco Central (BC) apurou, pelo regime de competência, o valor bruto de R$ 380 bilhões como juros sobre a dívida do setor público consolidado (União, Estados, municípios e estatais). Isso equivale a uma taxa de 7,0% sobre a dívida bruta (DP) antes da capitalização dos juros e a 5,5% do PIB. São números que impressionam os analistas.
Ocorre que, no mesmo período, a inflação medida pelo IPCA foi de 4,6%. Essa parcela, relativa à inflação, é capitalizada na DP e corresponde à mera atualização monetária do seu valor. O mesmo porcentual (adotando a hipótese simplificadora de que a variação do IPCA é igual à do deflator implícito do PIB) também atualiza o PIB, não tendo qualquer efeito sobre o nível de endividamento público. Subtraída a inflação, observa-se que o juro real sobre a DP foi de 2,4% ou 1,9% do PIB. Repetindo: a conta de juros que realmente importa foi de 1,9% do PIB, e não de 5,5% do PIB. Para fins de comparação, basta lembrar que, nos últimos 12 meses, o governo federal gastou aproximadamente 11% do PIB com pagamento de benefícios previdenciários, aqui incluídos os inativos da União.
Olhemos esta questão com mais detalhes. A relação DP/PIB, no conceito do FMI (que inclui, além dos títulos em mercado, aqueles que se encontram na carteira do BC), alcançou em outubro deste ano 84,6%, um patamar exagerado para um país emergente como o Brasil.
Uma fórmula matemática simples, de amplo conhecimento entre os economistas, permite entender melhor a relação entre as variáveis que determinam a evolução do endividamento. Podemos explicitá-la da seguinte forma: SP = B x (r – g)/(1+g), onde “SP” é o superávit primário (que não inclui o pagamento de juros) necessário para estabilizar o endividamento como proporção do PIB; “B” é a relação dívida bruta/PIB atual; “r” é a taxa real de juros; e “g” é a taxa de crescimento real do PIB.
Para ilustrar, suponhamos que a taxa real de juros seja de 4% ao ano e que o crescimento do PIB se estabilize em 2% ao ano. Substituindo esses valores na fórmula, verificamos que seria preciso que o setor público gerasse superávit primário de 1,7% ao ano para manter a DP nos atuais 84,6% do PIB. Se o crescimento do PIB subisse para 3% ao ano, o superávit primário requerido cairia para menos da metade (0,8% do PIB). Notem que a dinâmica do endividamento depende de variáveis reais, não nominais. A parcela dos juros correspondente à inflação não tem a menor influência sobre isso.
Imaginemos, agora, que o governo consiga, com a venda de ativos, abater R$ 500 bilhões da DP, o que a reduziria para 77,1% do PIB. Mantidos os níveis de juro real e crescimento do PIB, nossa fórmula simples nos mostra que o superávit primário necessário para estabilizá-la neste novo patamar é quase o mesmo do anterior, ou seja, 1,5% do PIB. Se por acaso o governo falhasse parcialmente no ajuste das contas públicas e passasse a registrar equilíbrio primário (déficit zero), ao invés do superávit requerido, bastariam cinco anos para o endividamento voltar ao patamar anterior de 84,6% do PIB.
Moral da história: sem transformar o atual déficit primário em superávit, principalmente por meio de uma profunda reforma da Previdência, tentar conter os juros nominais, mesmo que seja mediante resgate de parte da dívida, não resolve nosso problema fiscal.
Fonte: Estadão