O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que as dívidas de empresas em recuperação judicial podem ser corrigidas pela Taxa Referencial (TR). E foi além: permitiu que o juro de mora seja menor do que o estabelecido pelo Código Civil – se assim tiver sido aprovado pela assembleia-geral de credores. A decisão contraria o entendimento que vem sendo adotado, especialmente, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).
Há uma série de acórdãos da Corte paulista, tanto da 1ª como da 2ª Câmara de Direito Empresarial, determinando que a TR seja substituída pela “tabela do tribunal”, que tem base no INPC e cuja variação é geralmente mais alta. Os desembargadores impõem ainda que sejam fixados juros de 1% ao mês, com base no Código Civil.
Esse tema tem potencial para afetar um grande número de empresas. Um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) e da PUC-SP mostra que a TR foi o indexador usado em mais de 75% dos processos distribuídos nas duas varas especializadas de São Paulo, entre 2013 e 2016.
A Taxa Referencial é calculada pelo Banco Central e utilizada, por exemplo, na correção da poupança. Já o INPC é calculado pelo IBGE e serve para medir a variação do poder de compra da população brasileira. É muito usado como parâmetro para o reajuste de salários em negociações trabalhistas.
Há uma diferença grande entre esses dois índices. Uma dívida de R$ 100 mil, entre janeiro de 2015 e novembro de 2018 teria, pela TR, atualização de 4,46% e iria a R$ 104.463,93, por exemplo. Pelo INPC, seria corrigida em 25%, alcançando R$ 125.031,18. Para chegar aos valores, a reportagem usou a calculadora do Banco Central.
O caso que chegou ao STJ envolve a empresa Braga Comércio e Indústria, cujo o plano de pagamento previa o parcelamento das dívidas por 14 anos, com atualização pela TR e juros de 1% ao ano (REsp nº 1.630.932). Ela foi uma das que teve as condições de pagamento alteradas pelo tribunal paulista.
“A empresa define os critérios de correção e juros com base na sua capacidade financeira. Ela faz uma previsão de quanto pode pagar, em quantas parcelas e quais os encargos pode assumir”, diz o advogado Cássio Ranzini Olmos, do Oliveira, Canali, Ranzini & Jurado Sociedade de Advogados, representante da empresa no caso julgado pelo STJ.
As consequências, se houver a interferência do juiz, ele afirma, tendem a ser “catastróficas”. “Pode inviabilizar o cumprimento do plano que foi acordado com os credores e levar a companhia à falência”, enfatiza o advogado. “As partes, como em qualquer contrato, podem definir o que entenderem como o mais adequado para o negócio. Não há, aqui, questão de ordem pública envolvida.”
O recurso apresentado pela empresa contra a decisão do TJ-SP foi julgado pela 3ª Turma do STJ. O relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, afirma, em seu voto, que a Corte tem jurisprudência firmada no sentido de limitar o controle judicial sobre o plano de recuperação “aos aspectos da legalidade do procedimento e da licitude do conteúdo, sendo vedado ao juiz se imiscuir no conteúdo econômico”.
Sobre a aplicação do juro de 1% ao mês, como defende o tribunal paulista, Sanseverino diz que “não há norma geral no ordenamento jurídico que estabeleça um limite mínimo, um piso, para a taxa de juros” – moratórios ou remuneratórios. “As normas do Código Civil a respeito da taxa de juros, ou possuem caráter meramente supletivo ou estabelecem um teto”, complementa.
Em relação ao uso da TR, o ministro afirma que a aprovação do plano de recuperação judicial “exige alguma disposição de direitos” por parte de credores. Caso contrário, se exigirem o cumprimento da obrigação nas mesmas condições em que pactuadas, acrescenta, a recuperação da empresa se tornaria inviável.
“Se o plano de recuperação pressupõe a disponibilidade de direitos por parte dos credores, nada obstaria a que estes dispusessem também sobre a atualização monetária de seus créditos, assumindo por si o risco da álea inflacionária, tudo em prol da recuperação da empresa”, diz em seu voto. O entendimento do relator foi seguido de forma unânime pelos demais ministros.
Especialista na área de recuperação judicial, Renato Mange, sócio do Mange Advogados, afirma que já havia decisões do STJ sobre aplicação da TR para correção de dívidas e que a confirmação do posicionamento dá segurança às empresas. “O Judiciário tem o controle de legalidade. Isso é indiscutível”, diz. “Mas taxa de juros não é legalidade. É negócio e a parte negocial tem que ser resolvida pelos credores em assembleia”, acrescenta.
Em São Paulo, entre os desembargadores da 1ª e da 2ª Câmaras de Direito Empresarial, há diferentes justificativas para o veto à TR e ao juro de 1% ao ano. O desembargador Enio Zuliani, da 1ª, por exemplo, que foi o relator do caso envolvendo a empresa Braga Comércio e Indústria, afirma em seu voto que o plano de recuperação torna-se vulnerável “porque pode haver prejuízo aos credores quando da efetivação do pagamento das parcelas devidas”.
Já o desembargador Ricardo Negrão, da 2ª Câmara, que tratou do tema em pelo menos dois julgados (processos nº 20159890-06.2018.8. 26.0000 e nº 2139531-77.2017.8.26. 0000), entendeu que a atualização monetária, se não for “plena”, pode configurar “disfarçado deságio” aos pagamentos. “Aliás, não se sabe ao certo, com a previsão da TR mais 1% ao ano qual é a verdadeira moeda de pagamento”, diz em um dos casos.