Até o fim do ano, o Banco Central deverá iniciar uma consulta pública para definir a regulação que permitirá os negócios com as duplicatas eletrônicas no país. Mardilson Queiroz, consultor do departamento de regulação do sistema financeiro do BC, afirmou que o debate ocorrerá com o desafio de dar qualidade jurídica e operacional para esses ativos de crédito. Um ponto principal é garantir a unicidade desses títulos; ou seja, que a mesma duplicata não seja usada duas vezes para a antecipação de recebíveis.
Queiroz falou sobre o assunto no congresso da Anfidc, associação que reúne participantes de fundos de investimentos em direitos creditórios, realizado em São Paulo na semana passada.
As duplicatas são notas de operações comerciais realizadas entre grandes empresas e seus fornecedores. Esses títulos sempre foram cartulares no Brasil, até que, em dezembro passado, a lei 13.775/18 autorizou a duplicata eletrônica, o que equivale dizer que o documento passará a ser digitalizado. Dessa forma, esse título, que nasce fora do sistema financeiro via um negócio entre duas partes, poderá ser depositado numa registradora e inserido no sistema. Com isso, o entendimento é que será possível dar mais transparência e segurança a essas operações. As estimativas de mercado são de que essas operações industriais somem hoje R$ 4 trilhões. Mas diante da falta de segurança dos títulos cartulares, apenas cerca de R$ 80 bilhões são utilizados em operações de antecipação de recebíveis hoje. Só depois da regulação do BC, esses papéis serão transacionados efetivamente como títulos de crédito.
Segundo Queiroz, muito do que o BC aprendeu com o mercado nas discussões sobre os recebíveis de cartão de crédito será aproveitado no debate sobre as duplicatas. Além do desafio de certificar a unicidade desses títulos, ele disse, outra necessidade é garantir o lastro desse documento de crédito.
“A regulação não vai entrar no mérito da qualidade do lastro. O que vai se tentar garantir de alguma forma é que se a duplicata foi escriturada é porque existe uma fatura lastreando”, explicou Queiroz. “Mas não iremos olhar a qualidade de crédito do sacado”, disse.
Esse tema leva a uma outra questão que está sendo amplamente debatida pelos técnicos do BC, que é definir quem poderá escriturar a duplicata – ou seja, transformá-la em um título eletrônico – e quais serão os requerimentos necessários para isso.
“Será qualquer instituição financeira autorizada pelo BC? Serão as registradoras? Ou será que haverá a necessidade de criarmos um ente novo, chamado escriturador, que passará por processo de autorização específica no BC para essa atividade”, questionou.
Outro ponto muito relevante que precisará ser alinhado com o mercado é a questão do “aceite”, necessário para tornar esse título de crédito juridicamente perfeito. O “aceite” é o ato que o devedor da duplicata reconhece aquele débito, ou seja, confirma que a transação existiu e ele responderá por ela. Como a duplicata é emitida pelo credor, ela nasce sem esse “aceite” do devedor, que acaba sendo feito posteriormente.
“A regulação buscará uma solução que facilite esse processo de ‘aceite’ tanto para sacado quanto para o sacador [cedente]”, afirmou Queiroz. Em relação ao sacado, ele destacou a necessidade de facilitar dois aspectos: tanto na forma como ele dará o aceite quanto na escolha de como ele fará o pagamento da duplicata.
A lei já fixou que elas poderão ser pagas por qualquer meio de pagamento do sistema brasileiro, como TED, DOC, pagamento instantâneo, boleto ou débito em conta, à exceção de dinheiro. E o BC deverá manter essa flexibilidade. Outra questão é que existe hoje no mercado a duplicata virtual, que é o boleto – apesar de representar uma segurança a mais, por não ser cartular, não possui as certificações que terão nas duplicatas eletrônicas. Essa duplicata virtual nasce amarrada ao boleto, enquanto o BC quer dissociar a duplicata do meio de pagamento.
“São dois negócios de natureza distinta. Uma coisa é a escrituração do nascimento do título de crédito duplicata. Outra é o meio pelo qual o sacado terá de pagá-la”, afirmou Queiroz. “Uma coisa não pode amarrar a outra. Mas temos que manter o sincronismo do fluxo para dar o conforto a quem adquirir o direito sobre essa duplicata de que, uma vez o sacado pagando, o recurso irá para o novo detentor da duplicata”, afirmou Queiroz.
A consulta vai discutir ainda se deverão ser registradas todas as duplicatas emitidas em transações entre fornecedores e indústria ou só aquelas que forem negociadas. “O que está por trás dessa discussão é que ela pode ser mais custosa para os participantes, se optarmos pelo registro de todas as transações, como já fizemos com os recebíveis de cartão”, afirmou Queiroz.
“Mas se queremos gerar competitividade na negociação desses ativos, é importante não só saber que o ativo existe naquele registro, mas também ter disponível o histórico de como é a geração de recebíveis daquele determinado comerciante”, esclareceu Queiroz. Ele reforçou que o registro pode fornecer essa informação de maneira equitativa para todos – desde que haja consentimento do comerciante.
O Banco Central pretende, ainda, propor a interoperabilidade entre os escrituradores para que, por meio de uma plataforma única, seja possível para o sacado dar o “aceite” às operações, e também ver quantas duplicatas existem contra ele.